Urariano Mota: Graciliano Ramos, um escritor comunista

“Na safra, aparecerão A bagaceira, de José Américo de Almeida; Menino de engenho, de José Lins do Rego;O país do carnaval e Cacau, de Jorge Amado; Os corumbas, de Armando Fontes; Casa-grande e senzala, de Gilberto Freyre.
Em artigo no Diário de Pernambuco, de 10 de março de 1935, sob o título O romance do Nordeste, (Graciliano Ramos) escreveu:
‘Era indispensável que os nossos romances não fossem escritos no Rio, por pessoas bem-intencionadas, sem dúvida, mas que nos desconheciam inteiramente. Hoje desapareceram os processo de pura criação literária. Em todos os livros do Nordeste, nota-se que os autores tiveram o cuidado de tornar a narrativa, não absolutamente verdadeira, mas verossímil. Ninguém se afasta do ambiente, ninguém confia demasiado na imaginação. (...) Esses escritores são políticos, são revolucionários, mas não deram a ideias nomes de pessoas: os seus personagens mexem-se, pensam como nós, sentem como nós, preparam as suas safras de açúcar, bebem cachaça, matam gente e vão para a cadeia, passam fome nos quartos sujos duma hospedaria.’”
Notem o quanto é impressionante como escritores tão distintos, José Lins, Graciliano Ramos, Jorge Amado, sem comunicação entre si, em estados e cidades diferentes, escrevam romances como se estivessem em um só movimento literário. Isso, que para os professores de cursinhos vestibulares, e até em certas cátedras universitárias, ganha feições de prato feito, é mais que coincidência.
No momento, chamo a atenção para o que me parece um engano, que por força do hábito se tornou um gênero de texto. Penso em Vidas Secas, livro sobre o qual a pesquisa de Dênis de Moraes informa:
“Cem dias depois de ter sido posto em liberdade, Graciliano iniciaria um novo projeto literário. Escrevera um conto baseado no sacrifício de um cachorro, que presenciara, quando criança, no Sertão pernambucano... As opiniões favoráveis o incentivariam a prosseguir a história, esboçando o perfil dos donos de Baleia.
Um romance desmontável, cujas peças podem ser destacadas para a leitura e seriadas de mais de uma maneira. Como telas de uma exposição que têm vida própria, independente dos demais.
Mas Vidas Secas não é um romance! E as razões para isso vêm não só de ordem financeira, quero crer. Um romance exige – ainda que a sua realização seja rebelde a linhas de fronteira – algo mais que a repetição de personagens em diferentes relatos. Se assim fosse, A Comédia Humana, de Balzac, seria um só livro. No romance há uma organicidade de pessoas, digo, personagens, que crescem e se diluem em um destino em bloco. E de tal modo que as suas partes autônomas, ainda que seccionadas e vendidas como contos, ganham pleno sentido no conjunto. O todo é a iluminação do particular.
“A qualidade essencial de quem escreve é a clareza, é dizer uma coisa que todos entendam da forma que você quis. Para escritor que é de ofício autodidata, isso custa anos, porque não está na gramática, nem em livro algum”.
Muito Bom!!!! é o comentário mais ponderado que me ocorre. Para o escritor que é de ofício autodidata, isso custa anos, porque não está na gramática, nem em livro algum, fala o mestre provado. Me acompanhem por favor: em que oficinas de literatura podem se formar escritores essenciais? Em que oficina de escritor se forma a vida? Em que oficinas, a seu modo laboratórios de bebês de proveta, se conseguirá a clareza que só a malhação fora das academias de todo tipo e gênero dá? Em que local se aprenderá a observação que o instinto e a mente e a experiência concebem?
Em Graciliano Ramos, se o compreendemos bem, há uma teoria da arte, há uma teoria da literatura, há uma lição de sabedoria que deveria ser luz para todo escritor digno do nome. Todos, novos e velhos, escritores livres ou escravos ladinos. Como neste passo, do diário de Paulo Mercadante, citado em O Velho Graça:
“Graciliano falou de sua experiência. Escrever é um lento aprendizado, que se estende pela vida, é alguma coisa que exige concentração e paciência. Muita paciência mesmo. Não se trata apenas de saber a sintaxe, de dominar um grande vocabulário, mas de ser fiel à ideia e domá-la em termos de uma precisão formal. Por isso, a experiência é essencial, só escapando dessa condição o poeta. Talvez com relação ao escritor haja uma conjugação, Graciliano concluiu, da pessoa como individualidade, do ponto de vista de uma psicologia determinada com o meio onde cresceu e viveu”.
Entendam. O entusiasmo ponderado acima não significa que da sua escrita venha uma norma, uma lei que diga a um homem que deseje “apenas” (!) expressar o seu pensamento: - olha, fora deste caminho nenhuma salvação é possível. Não é isso. Na literatura só existe um regra: não existe regra. Só existe uma maneira, de todas as maneiras.
E aqui, sem sair do capítulo da excelência da sua escrita, e como nem tudo são flores, entramos em um terreno mais pedregoso. Entramos no embate político do mestre, dentro do partido e fora dele, no mesmo tempo, até como uma prova de que a vida partidária não é uma estufa. A sociedade e a história passam pelos partidos comunistas, onde quer que estejam. Refiro-me ao cume da obra de Graciliano Ramos, o Memórias do Cárcere.
Pois bem, essa obra não se fez sem conflitos os mais sérios, mais particularmente com Diógenes de Arruda Câmara, o homem que seguia com rigor, digamos, excessivo a disciplina partidária. Diz o livro:
“Arruda pedira para folhear os originais de Memórias do Cárcere, aborrecendo-se, logo na primeira lauda, com a afirmação de que, no Estado Novo, ‘nunca tivemos censura prévia em arte’... No decorrer da reunião, cobrariam (Arruda, Astrojildo e Floriano Gonçalves) novamente a Graciliano o seu distanciamento do realismo socialista e a falta de vigor revolucionário de seus livros. Um dos presentes, em tom inflamado, diria que ele persistia num realismo crítico ultrapassado e citaria Jorge Amado como escritor empenhado em dar conteúdo participante a suas obras. Ao ouvir o nome de Jorge, Graciliano romperia o silêncio:
- Admiro Jorge Amado, nada tenho contra ele, mas o que sei fazer é o que está nos meus livros”.
Conta o livro que em outra oportunidade, anos antes desse dia, Diógenes, em uma reunião com escritores, entre os quais estavam Astrojildo Pereira, Dalcídio Jurandir, Osvaldo Peralva, e o próprio Graciliano, teria feito, segundo o biógrafo Dênis de Moraes, “uma apologia à literatura revolucionária, exigindo que os presentes se enquadrassem nos ditames zdanovistas. A certa altura, citaria como exemplo os poemas de Castro Alves, que a seu ver encaravam os problemas sociais numa perspectiva revolucionária. E o que era mais importante: com versos rimados”.
E mais, em outro ponto da biografia:
“Em conversas posteriores com Heráclio Salles, ele enfatizaria a aversão ao romance panfletário.
- Nenhum livro do realismo socialista lhe agradou? – perguntaria o jornalista.
- Até o último que li, nenhum. Eu acho aquele negócio de tal ordem que não aceitei ler mais nada.
- Qual a principal objeção que o senhor faz?
- Esse troço não é literatura. A gente vai lendo aos trancos e barrancos as coisas que vêm da União Soviética, muito bem. De repente, o narrador diz: ‘O camarada Stálin...’ Ora porra! Isto no meio de um romance?! Tomei horror.
- Não seria possível purificar o estilo do realismo socialista?
- Não tem sentido. A literatura é revolucionária em essência, e não pelo estilo do panfleto.
Não é de se admirar, portanto, que não tolerasse as fórmulas emanadas de Moscou. Ao tomar conhecimento do informe de Zdanov sobre literatura e arte, esculhambaria:
- Informe? Eu gosto muito da palavra, porque informe é mesmo uma coisa informe.”
A relação de Graciliano Ramos com o PCB, nos últimos anos, é conflituosa, aqui e ali em aberta crise. Mas se destaca nessa relação, por isso mesmo, uma expressão de grandeza do escritor, que não deixou a sua escolha pelo comunismo, mesmo em luta contra a estreiteza da direção na época. Nessa biografia emerge um comunista à velha maneira, à maneira que julgamos clássica, modelar, diferente de comportamentos de algumas militâncias que tudo se permitem, desde que para isso alcancem o poder. Olhem só como agia, e no que agia ele era, o comunista Graciliano Ramos:
“Recusava assinar artigos (no Correio da Manhã, onde trabalhava como revisor), alegando para os mais íntimos que não concordava com a linha editorial dos jornais burgueses. O máximo que admitia era colaborar com o suplemento literário. Relutava em aceitar aproximação maior com os proprietários doCorreio da Manhã, embora mantivesse uma relação cordial com Paulo Bittencourt (o patrão). A ortodoxia política o levaria ao exagero de não comparecer ao jantar pelo aniversário de Bittencourt. A José Condé, que passava a lista de adesões, afirmaria:
- Não me sento à mesa com patrão. Todo patrão é filho da puta! O Paulo é o que menos conheço, mas é patrão.
No dia seguinte, Bittencourt se queixaria:
- Mas, Graciliano, como é que você me faz uma coisa dessas?
- Paulo, eu o repeito, mas você é patrão ...
- Mas eu sou um patrão diferente.
- Não, Paulo. Todo patrão para mim é ..,
- ... filho da puta. Já sei que você xingou minha mãe.
O comunista e o burguês acabariam rindo juntos.
Paulo Bittencourt gostava de provocar Graciliano por suas ideias socialistas. Quando o Correio da Manhãrecebeu novas máquinas, Paulo o alfinetaria:
- Imagine se vocês fizessem uma revolução e vencessem. Todo esse parque gráfico seria destruído.
Graciliano o cortaria:
- Só um burro ou um louco poderia pensar isto. Se fizéssemos a revolução e vencêssemos, só ia acontecer uma coisa. Em vez de você andar por aí, viajando pela Europa, gastando dinheiro com mulheres, teria que ficar sentadinho no seu canto trabalhando como todos nós”.
Esse livro, O Velho Graça, tem uma característica até hoje pouco destacada. Em vez da pura leitura de uma biografia, desperta no leitor uma simpatia profunda pelo biografado. Nele Graciliano Ramos cresce como escritor em uma rara empatia, como um irmão mais que amigo, ou como um amigo mais que irmão. Enfim, como um camarada, fraterno, admirável.