A luz e as trevas na política
- No princípio, criou Deus os céus e a terra. A terra era
sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo, mas o Espírito de
Deus pairava sobre a face das águas. Disse Deus: haja luz. E houve luz. Viu
Deus que a luz era boa; e fez separação entre a luz e as trevas (Genesis 1).
No princípio, em 10 de fevereiro de 1980, criou Luiz Inácio
Lula da Silva (com a ajuda de amigos sindicalistas, intelectuais de esquerda e
fatias da Igreja Católica ligadas à Teologia da Libertação) o Partido dos
Trabalhadores (PT), sob a promessa de implantar na seara política, disforme e
vazia, a semente do socialismo democrático, desenvolver um empreendimento
trabalhista livre da tutela do Estado e resgatar a esperança do povo na
representação política. Disseram eles: haja luz. Transformaram o PT em luz. Viram que a luz era boa para
iluminar a sigla; e fizeram a separação entre a luz e as trevas. Para brilhar
no firmamento, escolheram como símbolo do partido a bandeira vermelha com uma
estrela branca ao centro e o 13 como código eleitoral.
"A paisagem social é um desenho multiforme e
policromático. Um animus animandi impregna setores, núcleos e categorias
profissionais. É insustentável a tese de que um partido simboliza a luz e
outro, as trevas”
No princípio, em 25 de junho de 1988, criou um grupo de
dissidentes do PMDB (entre os quais Franco Montoro, Fernando Henrique Cardoso,
Mário Covas, José Serra e José Richa) o Partido da Social Democracia Brasileira
(PSDB), sob a intenção de semear o terreno árido da política com a viçosa
semente do socialismo democrático e desenvolver um projeto “livre das benesses
oficiais, mas perto do pulsar das ruas para fazer germinar novamente a
esperança”. Proclamaram: haja luz. Transformaram o PSDB em luz. Viram que a luz
era boa para alumiar os caminhos do PSDB; e decidiram separar a luz das trevas.
Para atrair atenção, desenharam um tucano azul-amarelo como símbolo da sigla e
15 como código eleitoral.
Pois bem, esses dois entes, cuja criação aponta para
semelhanças, principalmente no que se refere à assepsia de condutas políticas,
ao viés socialista-democrático e à inovação de costumes, passaram anos e anos
praticando o jogo maniqueísta, acirrando ânimos, radicalizando posições,
multiplicando agressões e mobilizando alas e exércitos de filiados. Nunca se
viu, na contemporaneidade, um discurso tão agressivo quanto o que se lê e se
ouve em diferentes foros de debate, a partir das próprias redes sociais.
Reparte-se o território entre luz e trevas, revezando-se partidários do PT e do
PSDB, principalmente, na atividade missionária de se proclamarem, ambos,
defensores do Bem contra o Mal. A expressão maniqueísta toma corpo na
estruturação de pares antagônicos do tipo reacionário/progressista,
moderno/conservador, esquerda/direita, oprimido/opressor etc. O dualismo verbal
tem invadido, nos últimos tempos, até o campo das letras. Obras envolvendo
partidos e governos, produzidas por jornalistas e protagonistas que viveram as
histórias, são consideradas “detritos de lixo” ou “mentiras deslavadas” por uns
e outros, petistas, tucanos, adjacentes ou simpatizantes dos dois partidos.
Quem é contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo? Ah, é dinossauro. Quem é
a favor de cotas nas universidades e na administração pública? Esse, sim, é
politicamente correto. Os contrários entram no vagão do retrocesso. E assim por
diante.
É compreensível a propagação da luta de heróis contra
bandidos, na esteira da concepção da eterna luta do bem contra o mal, plasmada pelo maniqueísmo, religião fundada
no século III da era cristã. O mito sempre se fez presente na moldura
civilizatória, ganhando relevo na atualidade graças à profusão de meios –
filmes, seriados de TV, histórias em quadrinhos, videogames, desenhos infantis
etc. Puxar, porém, tal acervo para a esfera da política, principalmente em um
país que exibe 30 siglas partidárias em funcionamento, é uma incongruência.
Pior é ver o engajamento partidário de jornalistas. Sua missão é a informar,
interpretar e emitir juízos de valor sobre fatos socialmente significativos.
Servir de bastião de partidos, em evidente luta partidária, é transgredir a
missão. É inimaginável dividir o país em duas bandas, “Nós e Eles”. Por que
isso ocorre em uma Nação onde se consagram os valores da pluralidade, do
debate, das liberdades? Primeiro, a recorrente pregação do PT em afirmar, mesmo
sob o signo do mensalão, ser o partido da ética. Não admite erros. Ora, até as
religiões reconhecem desvios. Segundo, o acirramento da competição política. 20
anos de poder tucano no Estado mais poderoso do país animam o PT a enxergar a
possibilidade de realizar o “sonho dos sonhos do comandante Lula”: governar São
Paulo. 12 anos de poder petista no comando da Nação incentivam tucanos a
retomar o controle perdido para o PT.
Ademais, as visões particularistas desses entes consideram
outros protagonistas como massa de manobra, secundários, mesmo que concorram à
presidência da República. Basta ler que o governador Eduardo Campos, do PSB,
até então considerado amigo leal do presidente Lula, acaba de levar a pecha de
“tolo”, “traidor”, “sem compostura política”, atributos expressos no próprio
site do PT. A paisagem social é um desenho multiforme e policromático. Um
animus animandi impregna setores, núcleos e categorias profissionais. É
insustentável a tese de que um partido simboliza a luz e outro, as trevas. Até
porque os partidos, a partir do PT e PSDB, padecem sob uma enxurrada de
denúncias. Ou será que intérpretes das agremiações não conseguem entender o
grito das ruas? Enjaular os atores políticos entre as grades de errados e
certos, é enxergar de maneira bitolada a realidade nacional. Partidos e líderes
precisam descer do pedestal da arrogância e reconhecer erros e acertos. Sem
tirar o mérito de ações, programas, obras de quem quer que seja. Se uns e outros
forem injustiçados pela caneta da infâmia, recorram ao altar da Justiça. Não
há, entre nós, infelizmente, nenhum São Jorge partidário lutando contra o
dragão da maldade. Quem assim se fizer, cairá do cavalo.
Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP,
consultor político e de comunicação Twitter@gaudtorquato
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