domingo, 20 de julho de 2014

João Ubaldo: o gênio do povo

Repórteres
Cinthia Lopes
editora

Em cada palavra escrita existe um pouco de João Ubaldo Ribeiro. De tão fascinado pelos vocábulos, era capaz de consultar cinco ou seis versões de dicionários enquanto escrevia. João Ubaldo Ribeiro soube como poucos retratar o brasileiro e seu modo de falar. Lembrado pelos amigos que conquistou aqui por sua franqueza e simplicidade, o baiano de Itaparica era um exímio contador de histórias também na intimidade; seu bom humor e genialidade contagiavam. “Ele era despojado, uma pessoa ímpar. Estamos todos impactados. Tem pessoas que não passam, ficam internalizadas, e João Ubaldo é uma delas. Uma pena não estar ao lado de minha comadre Berenice neste momento”, disse emocionada a potiguar Margarida Seabra de Moura, irmã de Candinha Bezerra e Olga Aranha, madrinha de Chica Batella, uma das filhas do autor do clássico “Viva o povo brasileiro” e do lascivo “A casa dos Budas Ditosos”.

Fábio Motta/AE
Autor de obra-primas da literatura brasileira e universal, João Ubaldo Ribeiro deixa como legado uma escrita sofisticada e ao mesmo tempo ligada às tradições populares
Autor de obra-primas da literatura brasileira e universal, João Ubaldo Ribeiro deixa como legado uma escrita sofisticada e ao mesmo tempo ligada às tradições populares

Ubaldo (1941-2014) morreu no Rio de Janeiro na madrugada desta sexta-feira (18), aos 73 anos, vítima de embolia pulmonar. Ele deixa vaga a cadeira número 34 da Academia Brasileira de Letras que ocupava desde 1993. O enterro está marcado para este sábado (19). O escritor chegou a participar de uma edição do Encontro Natalense de Escritores (o antigo ENE atual Festival Literário de Natal – FLIN) e em 2010 foi um dos convidados do Festival Literário da Pipa (Flipipa), quando dividiu o palco com o escritor Geraldo Carneiro. 

A Ilha de Itaparica, onde passou a infância e a adolescência, cenário de alguns de seus principais trabalhos era também tema constante em suas colunas dominicais, Ribeiro vivia no Rio, entre idas e vindas, desde os anos 70 do século passado. Ele deixa quatro filhos.

“São lembranças muito fortes, foi muito enriquecedor a convivência que tive com ele nessas ocasiões. Não só pela potência intelectual que era, mas muito também pela franqueza: não esqueço quando ele declarou no Flipipa como era difícil viver de direito autoral no Brasil. Uma pessoa desprendida e, guardada as devidas proporções, era do quilate de um Guimarães Rosa. Grande perda para a literatura mundial”, lamentou Dácio Galvão, presidente da Fundação Capitania das Artes e curador do Flipipa e do ENE.

As relações de amizade construídas pelo escritor na esquina do continente surgiram em meados dos anos 1980, quando o cartunista Henfil (1944-1988) morava na Praia dos Artistas. Inclusive ele conheceu sua futura esposa, a psicanalista Berenice Batella Ribeira, aqui em Natal. “Na época João Ubaldo veio participar de um encontro de escritores, e Berenice era companheira de Henfil. Ficaram encantados um pelo outro”, lembra Candinha Bezerra, que hospedou o casal diversas vezes. “Era uma grande pessoa, não tinha vaidades. Para mim era o maior escritor brasileiro da atualidade, os livros deles são geniais, marcaram a literatura contemporânea”, destacou a produtora cultural e fotógrafa.

Para Margarida Seabra, João era “como se fosse da família, uma pessoa diferente da maioria que a gente conhece, e se identificou muito conosco”. Tanto que a ‘família natalense’ do autor foi personagem no conto “Do poder da arte e da palavra”, publicado em 1981 no “Livro de Histórias” – obra reeditada dez anos depois sob o título “Já podeis da pátria filhos”.

Na intimidade, segundo Margarida, o escritor baiano era a pessoa “mais divertida do mundo, varávamos noites conversando e ouvindo as histórias dele”. Ela é a personagem principal do conto que narra a história de três irmãs sanfoneiras: “João criou essa história quando eu estava grávida, e no meio da brincadeira ele disse que eu tocava a sanfona para esconder a barriga do mau pai. Foi parceiro do meu marido (o médico José Robério Seabra) em maratonas de declamações”. Margarida é mãe da professora Débora Seabra, que tem síndrome de Down e ganhou destaque nacional a partir de reportagens sobre o livro “Débora conta histórias”. “Ele esteve no lançamento, foi a última vez que o vi. Fez questão de vir acompanhar”. O texto da contra capa é de João Ubaldo: “São contos que ensinam docemente – e não só às crianças, porque os adultos também têm muito o que aprender com gente da grandeza de Débora”, escreveu no livro.

Insubstituível

O poeta maranhense Ferreira Gullar, de 83 anos, lamentou a morte do escritor: “Fiquei surpreso porque, pelo que sabia, ele estava bem de saúde. Havia atravessado um período de dificuldade, mas se recuperado. Foi uma notícia chocante”, disse Gullar. “Um romancista de nível muito alto, enorme qualidade, de obras maravilhosas como ‘Viva o povo brasileiro’, ‘O sorriso do Lagarto’ e ‘Sargento Getúlio’, além de ser um cronista sensacional, com muito senso de humor. Eu era leitor dele; toda semana lia João Ubaldo

Já o letrista Abel Silva contou ter estado no domingo com João Ubaldo no bar “Tio Sam”, no Leblon, onde o imortal da ABL assistiu à final da Copa do Mundo, torcendo pela Alemanha. “Ele tinha um neto alemão, filho do Bento Ribeiro. No domingo, brincou muito sobre como o neto chorava em português e alemão, estava muito bem e feliz”, contou Abel.

“Toda vez que eu chegava no ‘Tio Sam’, ele dizia: ‘Vou fazer uma coisa que ele (Abel) detesta’, e começava a cantar: ‘Só uma palavra me devora...’. ‘Ele é o autor disso’, dizia, apontando para mim. E eu dizia para ele que não detestava, claro, adorava tudo que vinha desse meu grande amigo”, contou o letrista. “Perdemos um extraordinário brasileiro. Algumas pessoas são insubstituíveis, sim. João Ubaldo era uma delas”.

Para Abel Silva, não há mais nenhum escritor como João Ubaldo Ribeiro no Brasil. “Ele vem de uma linhagem de escritores brasileiros ligados à tradição e ao conhecimento da fala e da mitologia popular. Herança popular acrescentada de uma cultura sofisticadíssima de um tradutor de Shakespeare, profundo conhecedor da literatura brasileira. E, com tudo isso, era também muito modesto. Era poliglota e jamais o vi usar expressões em inglês ou alemão, por exemplo, línguas nas quais era fluente”.

Prêmios

João Ubaldo foi um dos mais premiados autores brasileiros.  Foram dez honrarias, em diversos países. Em 2008, foi agraciado com o Prêmio Camões, em 2008. No Brasil, recebeu alguns Jabutis, em 1972 e 1984, respectivamente para o Melhor Autor e Melhor Romance do Ano, pelo romances “Sargento Getúlio” e “Viva o povo brasileiro”.  Quando perguntado sobre os muitos prêmios, costumava brincar respondendo que “os melhores são aqueles que têm prêmio em dinheiro. Qualquer escritor sincero responderia isso”.

* Com informações também da Agência Estado 

Obras e Adaptações mostram a versatilidade de sua obra

João Ubaldo Ribeiro iniciou cedo a sua rica bibliografia. Escreveu o primeiro romance aos 21 anos, “Setembro não tem sentido” (1963). Antes, já havia publicado contos em coletâneas diversas. O reconhecimento literário veio com “Sargento Getúlio”, de 1971, vencedor do Prêmio Jabuti. O livro é inspirado num episódio ocorrido na infância de João Ubaldo, envolvendo um certo sargento Cavalcanti, que recebera 17 tiros num atentado em Paulo Afonso, na Bahia; resgatado pelo pai do autor, chefe da polícia de Sergipe, chegaria com vida em Aracaju. O livro foi adaptado para o cinema, com direção de Hermano Penna e atuação de Lima Duarte. Recebeu vários prêmios no Festival de Gramado.

Em 1984 lança o épico de 700 páginas “Viva o povo brasileiro”, que se passa na Ilha de Itaparica e percorre quatro séculos da história do Brasil. Recebe por esse livro outro Prêmio Jabuti na categoria “Romance”, e o Golfinho de Ouro, do governo do Rio de Janeiro. O livro rende outro prêmio para João Ubaldo, na Marquês de Sapucaí: é transformado  em samba-enredo da escola Império da Tijuca para o carnaval de 1987.  O livro teve os direitos vendidos para o cinema, em 1998, e seria dirigido pelo cineasta André Luiz Oliveira. Até o momento, não aconteceu.

“O sorriso do lagarto” foi lançado em 1989. A trama, que flerta com a ficção científica, foi adaptada para a televisão em 1991 e virou minissérie
na Globo sob direção de Walter Negrão. Em 1997 publica o romance “O feitiço da Ilha do Pavão”, uma fábula picaresca que passeia entre a fantasia e a ficção científica numa remota ilha brasileira do século 18.  Um dos maiores sucessos editoriais de João Ubaldo veio em 1999, com “A casa dos budas ditosos”, um romance sobre a “luxúria”, da série Plenos Pecados da Editora Objetiva. “A casa” ficou por mais de 36 semanas entre os dez livros mais vendidos do país. Foi publicado na França, Espanha, Estados Unidos, e chegou a ser proibido em alguns pontos de venda em Portugal. A atriz Fernanda Torres atuou numa bem sucedida adaptação para o teatro, escrita por Domingos de Oliveira.

João Ubaldo também se aventurou pela literatura infanto-juvenil, com “Vida e paixão de Pandonar, o cruel” (que foi premiada na Alemanha) e “A vingança de Charles Tiburone”. De crônicas, lançou “Um brasileiro em Berlim” e “Arte e ciência de roubar galinha”, coletânea de textos seus publicados no O Globo e Estado de São Paulo. “Já podeis da pátria filhos” é sua coleção de contos. O autor foi agraciado em 2008 com o Prêmio Camões, considerado a maior honraria da língua portuguesa. (por Tádzio França).

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