“Flávio Rocha: Consumo, a porta de entrada da cidadania”
A seção de Opinião
da Folha de São Paulo trouxe na edição de quarta (3), no quadro Tendência/Debates, texto do
empresário Flávio Rocha, presidente da Riachuelo e do Instituto para
Desenvolvimento do Varejo (IDV), sob o título ‘Flávio Rocha: Consumo, a porta
de entrada da cidadania’:
- “No momento em
que não faltam candidatos a intérprete da “voz rouca das ruas”, aqueles que
identificaram e acompanham a migração dos 40 milhões de brasileiros para a
emergente classe C podem esclarecer aspectos que ainda não mereceram atenção.
Muitos desses
intérpretes continuam plugados em um modelo antigo para analisar o Brasil, mas
a velha pirâmide social se transformou num losango com o ingresso da nova
classe consumidora.
Boa parte dos
cidadãos que deixaram seu comodismo e letargia para fazer barulho e protestar
nas ruas de todo o país cumpriu um aprendizado completo antes de alcançar o
estágio da questão política.
Eram súditos
apáticos e conformados. Ao conquistarem a capacidade de consumir, conheceram
seu poder de exigir o que lhe havia sido prometido numa operação de crédito ou
num serviço de telefonia, por exemplo. Perderam o medo de protestar.
Nós, do varejo,
além de espectadores privilegiados dessa evolução, temos sido partícipes da
vida dos atores desse movimento social. A transformação do súdito em cidadão
foi possibilitada por empresas que não foram afetadas pelo pibinho, exatamente
porque se alimentam da força motora desse novo contingente de consumidores.
Foram essas
empresas que abriram as primeiras linhas de crédito para o público emergente,
não instituições bancárias. O resultado é que o varejo brasileiro é hoje o
maior especialista em classe C –conhece seus anseios e se antecipa no
atendimento de suas demandas.
Definiu-se um
verdadeiro processo de transformações demográficas e sociais. Seria ingenuidade
imaginar que mudanças tão profundas ficariam restritas ao mundo econômico. Os
reflexos políticos seriam mesmo inevitáveis. Só não viu quem não quis ver.
Os emergentes
protagonizam uma mudança radical na relação com o Estado. Antes, a via era de
mão única e pouco diferia daquela que os colonizadores portugueses
estabeleceram com os nativos. Os súditos se deslumbram com miçangas,
quinquilharias e bugigangas.
A grande
novidade para cada um dos indivíduos que compõem as dezenas de milhões que
deixaram a pobreza é a reciprocidade.
A figura do
consumidor passou a se sobrepor ao velho Jeca Tatu urbano. E o cidadão começou
a ganhar importância. Descobriu a necessidade de exigir contrapartida. Aprendeu
a questionar constantemente a relação custo-benefício. Aprendeu os benefícios
da concorrência e passou a se indignar com quem vende mais caro.
Assim como faz
com seus fornecedores, o cidadão-consumidor começa a cobrar do governo a
correta aplicação dos recursos dos impostos que ele paga e o mesmo nível de
eficiência, qualidade e excelência que reclama dos produtos e serviços que
contrata. Ineficiência? Desperdício? Corrupção? É incompatível.
Quando o Brasil
conquistou o privilégio de sediar os três maiores eventos esportivos do
planeta, nossos governantes devem ter imaginado que tamanha overdose de pão e
circo garantiria eleições e reeleições por muito tempo.
Jamais poderiam
imaginar que, em vez de perguntas sobre quando e onde seria a festa, surgissem
incômodas questões: Quanto custa? Por que no Brasil é mais caro? Quem paga? A
saudável e profunda transformação na postura do cidadão-consumidor está por
trás do grande susto do qual governantes e políticos demoram a se recompor.
Não se crê mais
em um Estado provedor todo-poderoso.
Depois de 25
anos, finalmente começa a ser regulamentado um artigo da Constituição Federal
(de autoria do então deputado constituinte Afif Domingos) que garante a todos
os brasileiros a transparência dos tributos e permite que o
consumidor-contribuinte saiba o quanto a manutenção do Estado pesa no seu
bolso.
A verdade é que
muitos reduziram o recado da voz rouca das ruas a pleitos pontuais, quando a
resposta está na mudança de postura do cidadão, que aprendeu a cobrar enquanto
consumidor. E suas primeiras reivindicações são custos menores e um Estado
menos presente.
Sem se esquecer
de exigir a troca de liquidificadores ou geladeiras com defeito, o brasileiro
começa a enxergar a viabilidade de um recall também para quem não se mostra
capaz de fazer bom uso do mandato popular que lhe foi delegado.
FLÁVIO ROCHA,
55, é presidente da Riachuelo e do Instituto para Desenvolvimento do Varejo
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