Protestos
Torcedores foram expulsos de arenas após protestos contra o presidente
interino; para juristas, medida fere direito à liberdade de expressão
Carta Capital
“Se
você se manifestar com uma faixa ‘fora Temer’, vamos pegar a faixa”. Foi assim
que um agente de segurança do estádio do Engenhão, no Rio de Janeiro, iniciou
uma discussão com dois torcedores que assistiam à partida da seleção brasileira
feminina de futebol contra a China, na quarta-feira 3. “Dentro do estádio não
pode”, disse o funcionário, conforme vídeo que circula na internet.
Protestos contra o presidente interino Michel
Temer (PMDB) têm sido reprimidos nos Jogos Olímpicos, e alguns manifestantes
chegaram a ser expulsos das arenas. No sábado 6, ao acompanhar uma prova de
tiro com arco, um brasileiro foi retirado do Sambódromo por agentes da Força
Nacional de Segurança. Motivo: um controverso grito ‘fora Temer’.
No mesmo dia, um grupo de 12 torcedores
que assistia à partida de futebol feminino entre França e Estados Unidos teve
de se retirar do estádio Mineirão, em Belo Horizonte, após um protesto: além de
pedir a saída de Temer, o grupo exibiu letreiros nos quais se lia “volta, democracia”, em inglês (“come back
democracy”).
Na noite de segunda-feira 8, o juiz
federal João Augusto Carneiro Araújo, em resposta a um pedido do
Ministério Público Federal contra a União, o Estado do Rio e o Comitê
Organizador da Rio 2016, concedeu liminar proibindo a repressão e a retirada de
manifestantes, liberando manifestações pacíficas durante o evento.
Antes da decisão, outros casos de
repressão foram relatados pela imprensa e nas redes sociais, e o Comitê
Olímpico Internacional (COI) e o Comitê Organizador da Rio 2016 anunciaram que
não irão tolerar cartazes de caráter político. “Queremos arenas limpas”,
afirmou Mario Andrada, diretor de comunicação da Rio 2016. Vaias, gritos e
cantos estão liberados. "Se isso não fosse aceito, metade do Maracanã
teria sido esvaziado [na abertura dos Jogos]." Sobretudo nos poucos
segundos nos quais Temer assumiu o microfone.
Em nota divulgada nesta terça-feira 9,
o COI informou que possui um regra "em vigor há muitos anos" que
sustenta que os jogos não devem ser politizados. Segundo o COI, a regra 50 da
Carta Olímpica "tem como objetivo separar esporte de política, honrar o
contexto dos Jogos Olímpicos e garantir a reunião pacífica de atletas,
dirigentes e espectadores de diferentes culturas, crenças e origens".
O Comitê Rio 2016 informou nesta
terça-feira que vai recorrer, mas a decisão do juiz federal será respeitada
enquanto não houver mudança, e os protestos estão liberados.
A determinação das autoridades
olímpicas também se baseia na lei 13.284, que dispõe sobre as medidas relativas
aos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016. A lei, que foi sancionada por Dilma Rousseff no dia 10 de maio – dois
dias antes de seu afastamento
pelo Senado –, diz em seu artigo 28º que é proibido “portar ou ostentar
cartazes, bandeiras, símbolos ou outros sinais com mensagens ofensivas, de
caráter racista ou xenófobo ou que estimulem outras formas de discriminação”,
bem como “entoar xingamentos ou cânticos discriminatórios, racistas ou
xenófobos”.
Em outro parágrafo, contudo, o texto diz que “é ressalvado o direito
constitucional ao livre exercício de manifestação e à plena liberdade de
expressão em defesa da dignidade da pessoa humana”. O trecho está de acordo com
a Constituição de 1988, que garante aos brasileiros a “livre manifestação do
pensamento” (artigo 5º, parágrafo IV).
A lei aprovada em maio não faz qualquer
menção a protestos “políticos”. Para a professora Eloísa Machado, da Fundação
Getulio Vargas (FGV) Direito – São Paulo, manifestar reprovação política não
caracteriza ofensa, e a lei está sendo interpretada de maneira “irresponsável,
ilegal e inconstitucional”. “É uma violação à liberdade de manifestação e de
expressão no Brasil, um tipo de censura aplicada aos jogos”, afirmou, em
entrevista aCartaCapital.
De acordo com a professora, o Coletivo de Advogados em Direitos Humanos
(CADHu) – do qual ela faz parte – entrará com uma ação na Justiça Federal de
São Paulo para garantir a liberdade de expressão na partida das quartas de
final do futebol feminino, marcada para a próxima sexta-feira 12 na Arena
Corinthians (Itaquerão). “Estamos preparando neste momento uma ação judicial
para evitar que uma pessoa que queira ir ao jogo seja proibida de se
manifestar”, disse.
As expulsões de torcedores ganharam
destaque na imprensa internacional. Reportagem publicada no domingo pelo diário
norte-americano The Washington Post relata que “os
Jogos Olímpicos enfrentaram uma nova polêmica neste fim de semana – e desta vez
não foi sobre segurança, zika ou águas poluídas, mas censura”. O The New York Times, por sua vez, afirma que
as expulsões “alimentam o debate sobre os limites da liberdade de expressão” em
um País que passa por um período de “extraordinária agitação política”.
Especialistas consultados pelo site de
notícias jurídicas Justificando também afirmam que o veto
à manifestação política é inconstitucional. “É evidente que pode [protestar].
Qualquer coisa diferente disso é ditadura”, disse o historiador Salah
H. Khaled Jr., professor de Ciências Criminais da Universidade Federal
do Rio Grande (FURG). Para Márcio Sotelo Felippe, procurador do Estado de
São Paulo, as medidas são reflexo de um autoritarismo crescente no País. “É
estado de exceção. A Constituição de 1988 não existe mais.”
Decisão do STF
A proibição de protestos em estádios foi considerada constitucional pelo
Supremo Tribunal Federal (STF) em 2014. Na ocasião, os ministros analisaram um
recurso do PSDB que questionava a restrição a cartazes e bandeiras nas arenas
prevista na lei 12.663/2012, a Lei Geral da Copa.
Por 8 votos contra 2, o STF entendeu
que a proibição era legal. Apesar de ter votado pela legalidade do dispositivo,
o relator do processo, Gilmar
Mendes, registrou em seu voto que “é preciso ter a visão” de que
autoridades públicas estão sujeitas a vaias e protestos, o que não pode ser
confundido com ofensa.
“De fato, é preciso que nós tenhamos também certa compreensão do que se
diz no estádio, que a gente saiba que ali se empregam expressões figuradas. Ao
chamar um juiz de ladrão, ninguém, de fato, está imputando ao juiz uma dada
falta, senão a de que ele errou no lance. É preciso ter essa compreensão, como
as vaias e os apupos também dirigidos a autoridades, às vezes, de maneira muito
mais enfática, a rigor, também não são ofensas de caráter pessoal, elas são
apenas manifestações de desacordo. Portanto, é preciso ter essa visão”, afirmou
Mendes.
Para Eloísa Machado, o Supremo foi
claro na sua defesa à livre manifestação. “O que a Lei Geral da Copa tentava
evitar era justamente um tipo de ofensa de cunho discriminatório, um episódio
de racismo, como nós infelizmente já tivemos nos estádios do Brasil”, diz.
"O artigo analisado é praticamente
idêntico ao da Olimpíada, e a decisão não restringe o direito à liberdade de
expressão, pelo contrário, protege a liberdade de expressão e de manifestação,
impedindo aquilo que a nossa Constituição já impede, ou seja, racismo e xenofobia. Então, nesse sentido,
o 'fora Temer' e o 'fora Dilma' não seriam conteúdos ofensivos, mas
manifestações políticas", conclui a professora.