terça-feira, 10 de junho de 2008

A presunção de inocência e a negativa de registro de candidatura

por Andrei Lapa de Barros CorreiaProcurador Federal

Vários tribunais eleitorais têm anunciado que rejeitarão - ou tentarão perpetrar esse absurdo - registros de candidaturas de cidadãos processados judicialmente. Um ministro do supremo tribunal federal opinou favoravelmente à prática, ainda que seja certa a chegada da questão ao tribunal guardião da constituição.

Essa tendência responde às demandas massificadas por maiores filtros de honestidade dos agentes políticos propriamente ditos, ou seja, daqueles que se submetem às eleições populares. Mas, tanto a tentativa do judiciário de responder a tal demanda, quanto a pressão desordenada da opinião pública refletem o baixo nível de atuação e de compreensão da dinâmica democrática no Brasil.

A eleição de representantes ímprobos, criminosos ou levianos é juridicamente impossível. Por outro lado, o afastamento do representante cuja improbidade, atuação criminosa ou politicamente inadequada deu-se durante o mandato encontra previsão legal.

As dificuldades dos processos, sejam judiciais, administrativos ou políticos, não são antecedentes legítimos para negar-se vigência à constituição, nem para se pretenderem atuações sumárias que se assemelham a linchamentos.

Há mecanismos para se apurarem infrações e para se formar a culpa. Não há, contudo, como se escapar da selvageria se todos puderem ser considerados culpados antes de uma decisão transitada em julgado.

A garantia

A garantia da presunção de inocência pressupõe o Estado e seu monopólio da pretensão punitiva. Com efeito, não se encontra razoabilidade alguma em pensar tal direito em um ambiente de justiça privada sem entidades conceitualmente acima de todos de uma coletividade.

Daí que a garantia e o ente estatal são reciprocamente referentes, na medida em que um não se aborda sem referência ao outro. A existência de um ente monopolista da violência - o Estado - demandou que se previssem freios formais e materiais ao exercício do poder.

Por outro lado, a presunção de inocência opera seus efeitos diretamente contra o Estado, obrigando-o a seguir regras pré-estabelecidas para se apurar a violação de alguma regra e se aplicar a violência estatal cabível, a penalidade.

A garantia de que ora se trata parece sustentar toda a estrutura processual prevista na constituição brasileira vigente. Resulta que devido processo legal e ampla defesa com os meios a ela inerentes são corolários da presunção de inocência. O processo judicial como atualmente compreendido não teria sentido algum se não se balizasse pela presunção de inocência.

Se a culpa pode ser afirmada sem que se trilhem os caminhos pré-estabelecidos, chega-se a uma situação limite de inutilidade do processo e, por via de conseqüência, daqueles que o conduzem. Visto sob tal prisma, a conduta anunciada por tribunais eleitorais é auto-destrutiva, porque se o processo é desprezível como veículo condutor à certeza jurídica, o judiciário também o é.

Pode-se objetar que a referida presunção é mitigada e, até mesmo, invertida em muitos casos. Todavia, as relativizações e inversões nunca representam limites a duas liberdades fundamentais: a liberdade de ir e vir e a liberdade política.

O sistema não admite a privação de liberdade física, nem a privação de participação no processo democrático sem que se provem e se julguem as infrações que podem acarretá-las. São as duas liberdades consideradas mais importantes e que demandam eficácia plena da ampla defesa e do respeito a todas as regras processuais.

É possível observar-se um nítido afastamento da presunção de inocência em casos de responsabilização civil objetiva, ou sem culpa. Tais casos não levarão à supressão sumária e sem defesa de valores fundamentais, apenas à reparação de danos de ordem civil.

Portanto, não se poderá afirmar que as exceções, afastamentos e mitigações específicas e sistematicamente coerentes sejam suporte teórico para defender-se o desprezo à presunção de inocência em matéria de exercício de direitos políticos.

Um sistema em que o acesso aos cargos políticos executivos e legislativos faz-se por meio de eleições deve ser extremamente cuidadoso com as previsões de inacessibilidade à disputa. Isso, porque não se trata de uma disputa qualquer, mas de pretender ser escolhido pelo detentor do poder soberano, ou seja, o povo.

As restrições devem ser mínimas e legítimas para que se não tornem antidemocráticas e, no limite, inconstitucionais. Não é constitucional, nem legítima, a tentativa de vedar o acesso à disputa eleitoral àqueles processados judicialmente sem decisão definitiva.

Quanto à inconstitucionalidade - evidente e frontal - não parece preocupar os defensores do arbítrio em gestação. Sempre haverá margens para confusões interpretativas e sempre se recorrerá ao argumento de que se confrontam princípios, muito embora, nesses casos, um dos princípios do suposto confronto nunca se aponte.

Democracia formal e material

É possível falar-se em democracia sob os aspectos formal e material, mas não é viável pretender que um dependa do sacrifício do outro. Tampouco mostra-se defensável afirmar a dependência necessária entre a democracia formal e material, de forma a que na falta de um aspecto fosse impossível cogitar-se do todo.

Assumirei que democracia material implica liberdade real de escolha, o que demanda ausência de miserabilidade, educação dos eleitores e informação clara e não manipulada sobre o processo político e sobre os postulantes. A conjunção desses elementos constituiria um ambiente de possibilidade de escolha incondicionada.

Observando-se por outro ângulo, direi que a democracia sob o aspecto formal revela-se na previsão de eleições, de sua periodicidade, dos critérios quantitativos de sufrágios para se aceder aos cargos, nas condições para se apresentarem candidatura, nas regras para o perdimento dos cargos.

A tentativa de supressão da presunção de inocência, para se negar registro de candidatura, é agressão a regra formal da democracia em defesa de outra regra formal. Mostra-se, além de juridicamente absurda - por inconstitucional - logicamente inconsistente.

Convém deixar claro que impedir o cidadão processado ou mesmo condenado de disputar eleições não é vedação em defesa da democracia material. Esta não deixa de existir pela escolha popular de um delinqüente, senão pela supressão da possibilidade de escolha lúcida.

Então, constata-se que as limitações à apresentação de candidaturas destinam-se a garantir o regime sob seu aspecto formal, na medida em que estabelecem regras atinentes ao modo de se operar a democracia, não ao seu modo de existir.

Conclusões

As conclusões a que se chegam são terríveis e indicam o nível bastante elementar de educação e de civismo em que se encontra o Brasil.

Aquilo a que se chama opinião pública consagra a idéia de que há delinqüentes em demasia nos cargos eletivos. Para se apurarem condutas delitivas, o Estado brasileiro dispõe de estruturas investigadoras, acusadoras e julgadoras, mas a falta de sensatez dominante prefere o linchamento com verniz jurídico.

Propõe-se, com enorme singeleza, afastar-se uma garantia constitucional fundamental de todo e qualquer cidadão, oponível às tendências de arbítrio do Estado, a bem de se evitar que criminosos sejam candidatos. Sucede que criminosos existem apenas depois de sentença judicial irrecorrível! Não será a falta de tais sentenças o problema?

A infração proposta não se dirige a dispositivo menor da constituição ou a norma apenas formalmente constitucional. Dirige-se a uma garantia que consiste em cláusula pétrea. Mais que isso, é escandaloso verificar que a medida é proposta por tribunais, talvez no afã de se mostrarem simpáticos aos anseios populares.

Contudo, tribunais não devem buscar apoio popular no sentido de responder a demandas nitidamente políticas e que refletem as percepções ambíguas de indignação da população. Podem buscar reconhecimento popular quanto a estarem cumprindo eficientemente sua função de julgar segundo o direito posto.

O problema real da democracia brasileira encontra-se na elevadíssima ignorância e pobreza das populações e no manejo oportunista e enviesado das notícias. Atacá-los é, porém, uma tarefa para deuses e titãs e pode revelar-se, ademais, indesejada.

Daí pode-se ver a proposta de relativização da garantia constitucional da presunção de inocência, para negar-se registro de candidatura a processados, como uma cortina-de-fumaça.

Com efeito, o disfarce, o factóide, o discursar casuisticamente para agradar um público, o justificar-se ao argumento da fazer o que pretende o povo é muito mais que a instalação da ditadura do judiciário, como disseram alguns. É uma característica do exercício do poder no Brasil, que não recua diante de infração absurda ao texto constitucional - infração direta, diga-se - caso a oportunidade mostre-se boa para a auto-propaganda.

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