sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Democracia e voto obrigatório

por Andrei Lapa de Barros Correia
Procurador Federal


Voto obrigatório é reserva de mercado para a classe política e afigura-se incompatível conceitualmente com a democracia representativa. No Brasil, esse absurdo tem sido precioso para os postulantes de mandatos eletivos e tem sido defendido por meio dos mais curiosos argumentos. O mais hediondo baseia-se na premissa de que seríamos uma sociedade atrasada, imatura demais para manejar a democracia em forma plena. Mas, quem dirá o momento em que a tal maturidade política chegou, serão os próprios beneficiários da reserva de mercado de votos?

Os direitos de escolher ou de abster-se de escolher não são ontologicamente diversos. Consistem, a toda evidência, na mesma coisa, na medida em que não escolher é também uma opção. Não se trata aqui de uma dicotomia entre um ser e um não-ser, trata-se de um direito que pode ser exercido por mais de uma maneira, embora uma delas esteja sendo limitada.

A coisa, porém, tem desdobramentos mais sutis. O próprio sistema admite o voto branco e o nulo, inobstante rejeite o não comparecimento. A admissão dos brancos e nulos, assemelhados ao não comparecimento, impôs que se fizesse todo um discurso oficial e extra-oficial contra essas formas de rejeição amplas, prevista na própria lei.

Já se viu um presidente do tribunal superior eleitoral empreender uma cruzada propagandística inadequada, contra uma postura legal! Se olharmos calmamente a situação, com algum espírito crítico, chegaremos a uma pergunta que revela certa perplexidade: por que se faz toda uma campanha, mediante a utilização de um aparato de governo e de imprensa, contra o exercício de um direito? Deve haver alguma razão subjacente, cuja abordagem é inconveniente.

Lê-se em jornais, sempre que se aproxima o período eleitoral, que os eleitores não devem votar em branco. Nos jornais de Pernambuco, por exemplo, já se estamparam várias vezes o bordão, na primeira página, em letras enormes. Por que o receio de um jornal de que se vote em branco? Não se diga que a pergunta é boba, pois o mais forte indício de que não é tão boba é a insistência em não discutir o assunto senão a partir dos preconceitos e lugares-comuns habituais. Qual seria o grande crime da verdadeira democracia, com voto facultativo?

Esse obscurantismo político lembra-me muito o livro Ensaio sobre a lucidez, de José Saramago. Na hipótese do livro, toda uma cidade decide não votar, sem que isso tenha sido objeto de um acerto prévio, e os habitantes são considerados os piores criminosos do mundo. Simplesmente não se quis votar e a coisa toda não significava rejeição específica a uns e promoção de outros. Significava auto-exclusão do processo, negativa de conferir legitimidade ao governo tal ou qual. Grandíssimo livro.

Mas, o caso aqui no Brasil é de voto obrigatório. A vida é pior que a arte. O sujeito que se vê obrigado a ir votar dificilmente vota em branco, que é opção refinada e, portanto, estranha à grande maioria. Devo esclarecer que dizendo opção refinada não estou afirmando ser a melhor e, sim, a que demanda pensamento.

Uma vez que o eleitor encontre-se no local de votação, em pleno domingo, terminará votando mesmo em alguém. A idéia parece-lhe normal e mais fácil que votar em branco. Aí está: parece ao eleitor mais fácil ou simples votar em alguém que não votar. Foi-lhe incutida a noção de que se perde voto, seja fazendo-o branco, seja votando no que vai perder. Interessante espírito de exercício democrático.

Como não se revelou possível a democracia totalmente sem eleições - aspiração mais ou menos disfarçada de muita gente - partiu-se para a solução da democracia meramente formal, com eleitor mantido na ignorância e comparecimento obrigatório.

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