domingo, 15 de junho de 2014

Sociedade puxa a política

Gaudêncio Torquato
A expressão da vendedora de loja, na ligeira conversa que mantinha com o cliente, é uma síntese do momento: “Parece que o país vai explodir”. Esta é a percepção que preocupa milhões de brasileiros nessa terrinha conhecida como “a Pátria de chuteiras” ou, ainda, “ o país do futebol”.
Mas a explosão a que se referia a lojista não dizia respeito aos urros cívicos de torcedores, face às eventuais vitórias da seleção canarinho nas exuberantes arenas esportivas que passam a acolher o maior evento esportivo mundial.
Referia-se à tensão das ruas, às manifestações e movimentos que se espraiam por todos os lados, alguns sob o signo da violência, outros sob a ameaça de paralisação de serviços essenciais. Seu olhar era para a dura realidade que a fez chegar ao trabalho três horas após sair de casa.
Pois bem, o imenso contraste entre o ar pesado do momento e o clima descontraído, previsível pelo fato de o Brasil patrocinar a maior festa esportiva de sua história, aponta para múltiplos significados. O primeiro deles é o de que a batizada “Copa das Copas”, mesmo que consiga dar vazão ao ufanista título, se desenvolverá sob um tecido social esgarçado, a exibir a incapacidade do Estado no acolhimento às demandas da sociedade.
Causa perplexidade o corpo social em intensa ebulição e por tanto tempo. Os clássicos de nossa sociologia e antropologia chegam a apontar a cordialidade como a característica essencial do brasileiro, o que nos faria um povo por excelência gentil e pacífico.
Alguns perguntam: onde estaria o espírito cordato, a tendência à harmonia, ao diálogo, à confraternização, quando movimentos contestatórios fluem em todas as direções e sob a atenção de um Estado sem condições de acolher reivindicações de setores e categorias?
Para começo de conversa, nossa alma pacífica é uma quimera, como bem o demonstra Darcy Ribeiro, ao frisar que “conflitos de toda a ordem dilaceraram a história brasileira, étnicos, sociais, econômicos, religiosos, raciais etc, cada qual se pintando com as cores dos outros”.
Se há um traço de união entre os eventos que pontuaram nossa história, ele é a ineficiência do Estado na administração das demandas populares. O clamor das ruas não é de hoje. Desde os primeiros tempos da era Vargas, na década de 30, as elites, recitavam, com temor, o mantra: “Façamos a revolução antes que o povo a faça”.
O fato é que o Brasil moderno flagra uma sociedade correndo à frente das instituições. Dentro dessa moldura, é possível interpretar o que se passa. Primeiro, é oportuno lembrar os valores que contribuíram para balizar o ethos social.
Por aqui, a “estadania” fixou-se antes da cidadania. O termo foi termo cunhado por José Murilo de Carvalho para designar uma cultura mais orientada para o Estado, contrastando com a cidadania, cultura mais voltada para os cidadãos. Os direitos sociais (educação, trabalho, salário justo, saúde, aposentadoria), vieram antes dos direitos civis (liberdade, propriedade, igualdade perante a lei) e dos direitos políticos (organização de partidos, votar e ser votado etc).
No estudado modelo inglês, desenhado por Thomas Marshall, a cidadania foi implantada antes. Na Inglaterra, vieram, primeiro, as liberdades civis, garantidas por um Judiciário independente, depois, os direitos políticos consolidados por partidos e o Legislativo e, finalmente, os direitos sociais.
Por aqui, o social prevaleceu sobre os outros. Tal situação gerou a dependência ao Estado, que foi obrigado a ampliar os braços assistencialistas que, na esteira da competição política, incorporaram um viés populista. O Estado todo poderoso, por seu lado, passou a interessar às elites políticas, na medida em que enxergam no presidencialismo imperial a forma de perpetuação no poder.
Após a Constituição de 1998, as organizações da sociedade civil se multiplicaram. Hoje, o país sedia cerca de 300 mil ONGs. A organicidade social se amplia sob a elevação de padrões vida e condições de trabalho, a par da inserção de muitas entidades em estruturas governativas e de grupos que fazem pressão sobre o Estado, alguns sendo por este financiados.
Infelizmente, o cobertor, em vez de diminuir, aumenta. Veja-se o programa Bolsa Família, que começou com 8 milhões de famílias e, atualmente, conta com 13 milhões, quando a lógica aponta para a diminuição dos assistidos, a partir da implantação de projetos estruturantes nas regiões. Chega-se, assim, à esfera da política. Que não se renova. Os métodos são os mesmos do passado. Escândalos explodem. A corrupção campeia. Os problemas se repetem. Descobre-se, agora, o mesmo improviso da Copa de 50, com estádios inconclusos. A sete dias da abertura do Mundial, o Maracanã estava em obras e andaimes seguravam as arquibancadas e a cobertura, apesar de Brasil ter sido escolhido em 1946.
Sobressaem, na radiografia, o país da sociedade organizada, mais exigente e crítica; e a estampa de um território de gastos superlativos, obras inacabadas, desvios de dinheiro e escândalos. Ora, não resta outro caminho que o protesto, a contestação, a impaciência, a indignação. A pimenta nesse caldo é o pleito eleitoral, que se apresenta como ideal para grupos exibirem suas performances. A violência faz parte da estratégia. A ciência política mostra que na maior parte das sociedades, a paz cívica é impossível sem alguma reforma e a reforma é impossível sem alguma violência.
Nos Estados Unidos, na década de 60, Kennedy apregoava a aprovação da lei dos direitos civis para tirar a violência das avenidas e “levar a luta para os tribunais”. Já os flagrantes de nossas ruas estão a indicar que os confrontos só amainarão quando as estruturas governativas atenderem ao clamor social. E quando as reformas, que claudicam no Parlamento, forem feitas. Enquanto isso não ocorrer, as forças sociais, como locomotiva, continuarão a puxar as instituições, a partir dos agrupamentos mais esclarecidos.

Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação. Twitter: @gaudtorquato

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