sábado, 27 de julho de 2013

Conflitos infantis e cagões ideológicos

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Minha geração viveu os bons momentos da divisão em turmas de bairros e de ruas, ainda sem o advento das drogas. Na geopolítica da nossa adolescência, as diferenças não se estabeleciam por questões sociais ou futebolísticas. E sim por pedaços da cidade.

Cada moleque se relacionava no seu nicho bairrista, mantendo uma equidistância diplomática primeiramente dos quarteirões próximos e depois dos bairros, que quanto mais separados pelo desenho urbano de Natal, mais antagônicos se apresentavam.
Batalhas entre bairros ou entre ruas eram uma constante nas décadas de 1960 e 1970. Começavam no chão batido das ruas sem calçamento e se transportavam para os pátios ou quadras das escolas, que também acabavam virando um novo reino dos grupos.
Eu vi disputas acirradas entre garotos dos colégios Churchill e Atheneu, onde os fardamentos dos valentões camuflavam combatentes dos bairros Alecrim e Petrópolis, Rocas e Quintas, Neópolis e Potilândia, Cidade Alta e Cidade da Esperança.
Cada rua tinha sempre o cara mais canchudo na arte e na ciência de brigar. E havia sempre um valentão a fazer juras de desafio. A meninada torcia para ver um duelo desse naipe, que aqui e acolá acontecia para o deleite de uma plateia ávida por porrada.
Os meninos transferem para a vida juvenil os exemplos do mundo adulto. Com a diferença de que as inimizades só perduram até o próximo fim de semana de pelada, no campinho baldio mais perto dos lares de todos. Mas as brigas aconteciam pra valer.
No bando da minha rua havia os craques de bola e os craques de bofete. Eu, obviamente, me enquadrava sempre no primeiro time. As costelas à mostra não permitiam um arranca-rabo direto, exceto com a ajuda de um canivete ou uma pedra.
Bons no futebol e no pugilismo das ruas, Del e Toinho desmontavam zagueiros e defesas pessoais. Nunca abriram para galalau nenhum na hora do cacete. O primeiro, meu vizinho e parceiro de papos musicais, era um Bruce Lee afro-quintense.
Um dia apareceu o boato de que na turma de um quarteirão perto do grupo escolar tinha um garoto disposto a medir forças com Del. Pequenino, mas ágil e taludo, Boba dizia que acabaria com a invencibilidade do meu amigo, que jamais perdera uma briga.
Toinho, um meia-esquerda cerebral, convenceu Murilo e Bezo, nossos líderes do time Mário Lira F.C., a marcarem um jogo num campinho à margem da linha do trem, por trás da sede social da G.R.E.S Imperadores do Samba, nossa campeã das fantasias.
O jogo transcorreu debaixo de grande expectativa no embate entre Del e Boba. Diante do clima armado nos dias anteriores, abdiquei até dos dribles imitando o Leivinha do Palmeiras. Não estava disposto a ser o Golias daquele David apoquentado.
Em cada dividida, Boba entrava como se tentasse rasgar a alma do adversário pelo meio. Parecia uma versão infantil de Almir Pernambuquinho, um toco de gente esbarrando nos garotos maiores sem qualquer temor. A valentia em pessoa.
Mas o jogo encerrou sem que o desafiante fizesse qualquer pantim para o nosso Del, que atuou o tempo inteiro de cabeça erguida, cenho franzido e passos altivos. Impôs moral sem dar um pontapé, nem carrinhos nos pés de ninguém. O outro desmanchou.
Ao final do histórico amistoso, já na nossa rua saboreando os “dindins e polis” da mãe do saudoso ponta direita Ribeiro, um dos colegas do MLFC – não me lembro bem se um dos irmãos Cacau ou Naelson – comentou que o cara da outra turma era um cagão.
Acho que o termo surgiu naqueles anos para definir pessoas que afrouxam diante das adversidades, principalmente os que armam um quiproquó e depois se arrependem ou desafiam para uma briga e desistem, ou apanham como um cão sem dono.
Claro que Boba não era cagão coisa nenhuma. Fizemos amizade depois, quando a diplomacia da adolescência superou as barreiras da infância. Ele apenas teve bom senso, apesar da imaturidade. Durante aquele jogo, imitou a parte boa dos adultos sérios.
Conto essa história do meu passado não apenas para festejar amigos que a vida afastou, mas para remeter o leitor aos episódios de vandalismo perpetrados por militantes e meliantes camuflados no bojo das manifestações que agora ocupam as ruas do Brasil.
Há os que praticam a delinquência direta, rostos cobertos por balaclavas, como terroristas, e há os ideólogos das redes sociais, entrincheirados em casa diante do computador a incentivar os vândalos com palavras de ordem de apoio ao delírio.
Os dois tipos se equivalem na mesma valentia dos covardes, os que não têm coragem de mostrar a cara em público, olho no olho dos agentes da ordem pública. São ambos uns cagões; não amarram a chuteira do pequenino Boba da minha infância.
Alex Medeiros

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