Biografias e direito à privacidade
Ivan Maciel de Andrade - Advogado
Há muita gente que gostaria de ter a sua biografia feita por
um grande escritor. É uma prova, no mínimo, de que teve uma vida que interessa
à comunidade. Mas se não aparecer ninguém de renome para assumir o projeto da
biografia? Muito simples, o próprio biografado pode encomendar a tarefa a algum
jornalista temporariamente ocioso por um preço, óbvio, que não seja tão escorchante.
Resta-lhe a gloriosa satisfação de distribuí-la, depois de impressa, entre
parentes e amigos (se for o caso, até entre eleitores). Pode ainda desfrutar de
um prazer mais requintado, embora solitário: ler a sua biografia, em momentos
de descontração do corpo e do espírito, para ter certeza de quem realmente é,
de seus feitos, de seus méritos, de suas virtudes e de suas pequenas fraquezas,
colocadas na biografia intencionalmente para humanizá-lo. Não me digam que o
fato de ser biografado não sensibiliza o indivíduo mais inclinado à
misantropia, mais avesso a lances promocionais. O biografado raciocina da
seguinte forma: a biografia é apenas o seu retrato – físico, espiritual e
social – em palavras. E afinal ninguém pode ser censurado pelo fato de ter saído
bem – ainda que para inveja e desespero de muitos – numa simples fotografia
(pouco importando que tenha passado por sofisticados processos para o
indispensável aperfeiçoamento da imagem).
Por outro lado, a atividade do biógrafo situa-se num ponto
de encontro entre a narração e o documentário histórico. As melhores biografias
assumem o status de verdadeiras e até mesmo valiosas obras literárias e
historiográficas. Ninguém pode deixar de
reconhecer que a elaboração de uma interessante e bem escrita biografia exige
excepcionais aptidões literárias. De minha parte, tenho especial inclinação
pela leitura de biografias, tanto para me informar sobre o biografado e o
ambiente em que ele viveu, como em razão da qualidade artística da obra. Pois
sem valor estético a biografia se torna insípida, medíocre, perde grande parte
da motivação que justifica a leitura.
O que dizer do pretenso conflito de interesses que estaria
configurado entre a garantia constitucional do art. 5º, inciso IX, da
Constituição Federal, que assegura a liberdade de expressão, sem “censura ou
licença”, das atividades intelectuais, artísticas, científicas e de comunicação
e o direito à privacidade consagrado nos arts. 20 e 21 do Código Civil? Tudo
indica que o Congresso Nacional dentro de pouco tempo eliminará a controvérsia
autorizando expressamente a publicação de biografias “não autorizadas”. Seus
autores devem responder por crimes de injúria, difamação ou calúnia se ficar
provado – mediante contraditório e ampla defesa, embora em processo de rito
sumário – que de fato os cometeram. Condicionar a publicação de biografias de
pessoas que têm vida pública (artistas, políticos etc.) a uma arbitrária
autorização dos biografados ou familiares é um desserviço à história e à
cultura do nosso país. E o veto dos biografados ou familiares representa um ato
de obscurantismo, pois sonega informações ao julgamento da opinião pública.
Além de um desapreço ao trabalho intelectual dos biógrafos, que exige muitos
anos de árduas pesquisas.
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